Sunday 14 October 2012

Um Assassino em Asriad - Conto

Aqui vos apresento um pequeno e humilde conto da minha autoria alusivo à imagem publicada abaixo. Acrescento que esta imagem foi postada originalmente no grupo "O Cantinho do Corvo Fiacha" e que apenas me limitei a escrever o conto em volta da imagem. Bem, aqui fica.


Um Assassino em Asriad

            A neblina cobria o mar como um manto cinzento cobre uma cama. O sol brilhava no céu, acabado de nascer, refletindo a sua luz nas águas pacíficas e aquecendo o pequeno navio que deslizava suavemente no oceano. Joriah tentou ver para lá da neblina, mas apenas uma grande mancha cinzento-escura era visível. O seu cabelo loiro dançava com o vento que soprava forte naquela manhã. O capitão do barco subiu as escadas da sua cabina principal e resmungou qualquer coisa quando viu que Joriah se tinha levantado primeiro do que ele.
            Meia hora depois tinham atracado no porto de Asriad. O dia começava na cidade com os pescadores a chegar a terra e a despejar o pescado em contentores e caixas que depois seriam levados para o mercado. As peixeiras começavam a apregoar, as crianças corriam de um lado para o outro com os pés descalços sobre a pedra fria do porto, as criadas dos grandes senhores e senhoras da cidade traziam o seu pequeno cesto e compravam alimentos para o resto do dia.
            Joriah saboreou tudo aquilo enquanto esperava. Tinham-lhe dito que uma carta com as ordens a cumprir lhe seria entregue de manhã no porto e, por isso, agora só lhe restava esperar. Quando a fome despertou dentro de si, foi comprar duas sardinhas e um pão e comeu sossegado. Enquanto comia, uma criada passou por ele com o seu cesto e na borda havia uma carta. A criada deu uma pequena pancada e a carta caiu no colo de Joriah.
            O jovem mondarghi abriu a carta. Nela lia-se apenas duas frases: “Lorde Garfield. Independentemente do que acontecer, ele tem de desaparecer”. Era o quanto precisava de saber, aquele era o seu alvo.
            Saiu do porto, apreciando a pequena e cómoda cidade. Asriad localizava-se numa colina à beira-mar onde desaguava o rio Jarsmar que serpenteava colina abaixo. As casas tinham sido construídas ao longo da colina, tão perto uma das outras que pareciam caixas amontoadas. Pequenas pontes de pedra e madeira ligavam ruas superiores, pontes essas que tanto serviam de ligação como de habitação. Do outro lado da colina era o bairro rico da cidade, onde as casas eram mais afastadas, onde havia parques e onde o rio era limpo e translúcido, com as grandes mansões e jardins coloridos.
            Enquanto caminhava pelas ruas apinhadas de gente, Joriah foi apanhando pedaços de conversas aqui e ali e rapidamente descobriu que Lorde Garfield era o governador da cidade. E também descobriu que ia dar uma festa para celebrar o seu trigésimo terceiro Ciclo. O número três dá sorte, segundo se diz, e ainda mais sorte é celebrar o trigésimo terceiro Ciclo com Esthia, Elaria e Eria cheias.
            Chegou ao topo da colina. Dali podia ver o bairro rico de Asriad. Era uma parte mais calma da cidade, onde havia menos gente na rua, onde as crianças favorecidas brincavam nos parques acompanhadas das suas amas, os senhores e senhoras passeavam calmamente e conversavam, discutindo com que Lorde a filha se ia casar ou que rendimentos tinham tido no passado Ciclo. Havia uma particular azáfama em torno da maior casa da cidade. Era ali que, provavelmente, o Lorde Garfield vivia. Criadas e amas entravam e saiam da residência, apressadas para fazer qualquer coisa.
            Desceu a encosta. Antes de realizar o ato tinha de estudar o alvo, saber as suas rotinas, onde ia de manhã e de tarde, quando saía de casa e, mais importante, quando se tornava num alvo fácil. Os portões da casa eram guardados por quatro guardas e as portas principais da casa por mais dois. Quando espreitou por uma grande janela da mansão descobriu que o Lorde Garfield era seguido por mais um guarda que provou um bolo antes do Lorde o poder provar. Por que anda ele tão protegido? Então percebeu porquê. Aquela não seria certamente a primeira tentativa de assassínio. Ande protegido ou não, ninguém escorrega pelos dedos de um mondarg, muito menos pelos meus dedos, pensou Joriah.
            Após dar o estudo dos hábitos de Lorde Garfield por inúteis, Joriah dedicou o resto da tarde a procurar quem o tinha contratado. Todo o trabalho tinha sido feito em segredo. Nunca chegara a saber quem queria o Lorde Garfield morto, nem sequer sabia uma letra do seu nome. Não sabia se era um Lorde ou uma Senhora, se era rico ou pobre. No entanto iniciou a sua pesquisa por tentar descobrir a criada que lhe tinha dado a carta.
            Voltou ao mercado, agora na sua hora de ponta. As pessoas passavam atarefadas de um lado para o outro e em todo o lado toda a gente falava do trigésimo terceiro Ciclo do Lorde Garfield. Dizia-se que todos os Lordes e todas as Senhoras da Península de Darigmar iam à festa, que iam servir dezenas de pratos, que haveria teatros e músicos e que o melhor vinho de Gorganar tinha sido trazido. Não viu a cara da criada em lado algum e quando se preparava para partir, ouviu outra conversa entre duas peixeiras.
            — Ouvi dizer que o Lorde Garfield quase morreu na semana passada — disse uma.
            — Então, o que aconteceu? — Perguntou a outra, casualmente, como se aquilo fossem notícias ultrapassadas.
            — Parece que uma criada lhe envenenou o vinho. A sorte dele foi que o guarda provou primeiro e ele sobreviveu. A criada não foi encontrada, nem um rasto dela.
            — Com essa tentativa já lá vão… trinta e três? — E ambas começaram a rir histericamente.
            O que fez ele para o odiarem tanto?, questionou-se Joriah. Enquanto regressava ao bairro rico, passou por um templo onde um aglomerado de pessoas se tinha juntado. Abriu caminho pelo meio delas e entrou no grande templo iluminado por janelas coloridas que representavam os vários deuses ali adorados, os deuses da Nova Fé. No centro do templo e no centro de um círculo com doze estrelas de doze pontas, estava uma mesa de pedra onde um morto estava deitado. Doze velas tinham sido acesas em volta do corpo. Um Sacerdote no altar discursava acerca da boa vontade dos deuses e sobre como eles iam levar o bom Lorde Ariahad para o Reino Eterno. Uma mulher vestida de vermelho chorava junto ao corpo, acompanhada por uma criada. A criada, também ela vestida de vermelho, olhou para Joriah e este percebeu que era a mesma que lhe tinha dado a carta naquela manhã.
            Olhou de novo para o corpo deitado na mesa de pedra e de novo para a criada que agora consolava a recente viúva. Tinha sido o Lorde Ariahad que o tinha contratado para matar Lorde Garfield. E agora ele estava morto. A criada voltou a olhar para ele e lembrou-se do que a carta dizia. “Independentemente do que acontecer, ele tem de desaparecer”. O ato tinha de ser realizado, Lorde Garfield tinha de morrer.
            Desviou o olhar dos olhos frios e penetrantes da criada e desapareceu no meio da turba, deixando o Sacerdote a cantar uma prece qualquer à Deusa da Memória para que o Lorde Garfield não fosse esquecido.
            O sol começava a desaparecer no horizonte e ainda não tinha um plano para fazer Lorde Garfield desaparecer. Não podia simplesmente entrar na sua mansão e matá-lo. Teria de se infiltrar. Também não podia mentir e dizer que era um Lorde qualquer porque uma festa de tal magnitude teria os seus convidados bem escolhidos e controlados. Entar por uma janela não seria fácil, com todos aqueles guardas a guardar os portões frontais e com aquele muro alto.
            Decidiu voltar para junto da mansão, para a estudar melhor. Quando lá chegou já as três luas brilhavam no céu, com Esthia a lançar um brilho suave e prateado como as donzelas. Elaria brilhava dourada como a coroa que a Rainha usava e como o ouro que os Lordes e Senhoras usam para comprar os seus interesses. Eria, por sua vez, brilhava com uma luz cinzento-escura banal, como o resto do povo.
            Os primeiros nobres começavam a chegar. Bandaernos vindos do sul, noriathi do norte. Lordes e Senhoras vindos de todos os cantos de Erithios para celebrarem tão especial acontecimento. Viu Lorde Almuar’Enoh, um noriathi de Dagwell, a cidade mais a norte de Erithios. Aos quatro guardas que previamente guardavam os portões frontais, juntaram-se-lhes dois mordomos, um com uma lista com todos os convidados e outro que recebia os nobres do reino.
            Joriah estudou o muro que rodeava a propriedade e decidiu que era demasiado alto para tentar subir. Se não vou por cima, pensou, vou por baixo. A propriedade ficava isolada das outras, rodeada por um pequeno bosque de pinheiros. Foi até ao lado Este do muro e quando decidiu que era seguro, transformou-se. Tal como era habitual com os mondarghi, a Dádiva tinha-lhe concedido o poder de tomar a forma de um animal. Para sua sorte, era uma pantera. Quando se transformava, tornava-se num animal feroz com presas capazes de rasgar qualquer pescoço ou arrancar qualquer membro. Daí a sua fama de assassino.
            Começou a escavar junto ao muro com as suas garras compridas e afiadas. O seu pelo negro não passava de uma sombra entre as sombras e os seus olhos amarelos pareciam estrelas numa noite de Yx (ver em notas o significado). Quando viu que o muro não continuava mais, começou a escavar um túnel. Em poucos minutos uma passagem tinha sido aberta para o outro lado do muro. A noite já se tinha imposto e agora apenas as luas serviam de iluminação. Decidiu manter a forma de pantera negra pois seria mais fácil para se esconder na noite.
            Aproximou-se de uma grande janela que dava para o grande salão onde a festa decorria. Havia convidados de todas as raças, desde bandaernos com as suas imponentes asas negras e pele morena, até noriathi com a pele branca e os olhos azuis, passando por vanorianos com pele escura e longas espadas à cintura e pelos argonianos, poderosos na sua simplicidade.
            Havia convidados a dançar, outros parados a conversar e um grande grupo no centro do salão. Assumiu que aquele grupo se reunia em volta do Lorde Garfield. Os músicos tocavam músicas conhecidos por todos, como “A Espada do Sul” e “Os Cabelos da Donzela”. Finalmente o pequeno grupo dispersou e Joriah pôde ver o Lorde Garfield. Vestia um traje simples, uma túnica curta e cinzenta, um casaco vermelho e umas calças de lã grossa e castanha. Um longo manto vermelho com o símbolo da Casa Garfield bordado a ouro caía-lhe dos ombros, preso por um broche em forma de peixe a prendê-lo. O Lorde Garfield era, claramente, um argoniano, com o cabelo castanho e curto, barba aparada e olhos verdes. Sorria constantemente, de uma forma jovial, cumprimentando todos os que chegavam.
            Quando se apercebeu de que todos os convidados tinham chegado, pediu aos músicos que parassem. Fez um discurso que Joriah não conseguiu ouvir e quando acabou, os convidados bateram palmas de forma ruidosa. Só quando o Lorde Garfield desceu do pequeno estrado onde os músicos atuavam é que Joriah reparou no seu guarda pessoal que até então o tinha escoltado a toda a hora.
            Então surgiu a oportunidade perfeita para Joriah. Algum Lorde junto da janela onde estava chamou o Lorde Garfield que prontamente se aproximou. Joriah recuou e correu de encontro à janela. Saltou agilmente e partiu-a, entrando para o salão. Atingiu o Lorde Garfield que caiu ao chão e gritou. Os convidados também começaram a gritar e a fugir. O guarda pessoal de Garfield desembainhou uma espada longa e afiada e preparou-se para atacar a pantera, mas Joriah rasgou a garganta do Lorde e fugiu para o outro lado do salão onde os convidados se empurravam para sair. O guarda perseguiu-o, mas Joriah virou subitamente e correu para a janela partida em direção à noite escura. Saltou e conseguiu escapar.
            Quando se viu do outro lado da colina, onde as casas eram pobres e estavam empilhadas umas em cima das outras, voltou ao seu estado normal. A cidade adormecera com os seus habitantes a retirarem-se para as suas casas, preparando-se para o dia seguinte.
            Caminhou em direção ao porto onde esperaria por um barco que o levasse para longe de Asriad. O rio corria alegremente pelo meio da cidade e desaguava no mar agora escuro como o céu. O porto estava silencioso, ouvindo-se apenas os guinchos de alguns ratos. Então alguém lhe deu uma pancada na cabeça e Joriah desmaiou.
            Acordou numa sala ricamente decorada. Havia vários retratos nas paredes e tapeçarias com árvores genealógicas. Uma secretária de madeira escura tinha sido colocada em frente de duas janelas altas. Joriah estava sentado numa cadeira almofadada e à sua frente estava um bandaerno. Mas não era um bandaerno qualquer, era Lorde Ariahad.
            — Finalmente, acordaste — disse quando se apercebeu que Joriah tinha aberto os olhos. — Então, o Garfield está morto, não é?
            — Sim — respondeu Joriah. — Mas como é que…
            — Ótimo — interrompeu o Lorde Ariahad. — Há muito tempo que o quero debaixo de terra.
            — Então as tentativas de assassínio têm vindo de si?
            — Claro. De quem mais? E o Garfield começava a desconfiar. É que o lugar dele como governador pertence-me. Eu sou filho do antigo governador de Asriad e Garfield era pupilo do meu pai. A sua sede por poder começou a tornar-se demasiado grande e Garfield matou o meu pai. Uma vez que eu era muito novo e ele era pupilo de meu pai, fizeram-no governador após alguns subornos, apesar de toda a gente saber que tinha sido ele o assassino. O povo gostava muito do meu pai, sabes? Ele elevou esta cidade quera um monte de esterco a um monte de esterco com pepitas de ouro. Mas a Rainha sempre gostou do Garfield, vá-se lá saber porquê e desde então que ela me tem negado o meu lugar. Agora que tu o mataste, tu serás culpado e quando eu te entregar, a Rainha vai ter de me dar o lugar.
            — Mas tu estavas morto, toda a gente viu. O templo estava cheio de gente.
            — Sim. Mas a minha esposa, que sabia do plano, disse que queria levar-me para casa para a família se despedir de mim e afins. Claro que eu não estava realmente morto. A minha esposa esteve na Ilha durante dois anos e sabe o básico da Dádiva e conseguiu fingir a minha morte. Quando amanhã aparecer vivo, o meu médico dirá que tinha sido apenas um problema de coração e que não tinha morrido realmente.
            — E quando eles perguntarem como sabia que eu era o assassino?
            — E por que irão eles perguntar? Eu sou um Lorde, tu um desconhecido. E segundo o que eu vi, tu estavas transformado, não era? Todos sabem que foi um mondarg que fez o serviço. Primeiro porque nesta zona não há panteras negras e segundo porque nenhuma pantera negra selvagem parte uma janela, mata um Lorde que foi vítima de inúmeras tentativas de assassínio e vai embora.
            — Você estava lá quando eu ataquei?
            — Claro que estava. Senão, como me certificaria de que Garfield estava morto?
            — Esta cidade é demasiado corrupta… — murmurou Joriah.
            — A cidade não é corrupta. A política é que é.
            — Tanta sede de poder, tanto desejo de morte, tantos jogos de poder. Porquê tudo isto? Só por causa de um cargo e de mais algumas moedas? Só por causa da fama e do reconhecimento? Da riqueza?
            — A política é um jogo onde só os melhores sobrevivem. E como qualquer jogo, tens de saber jogá-lo para sobreviver. Garfield foi inteligente, mas desleixou-se quando se viu rodeado de poder e dinheiro. Agora vem, vou-te levar à Guarda de Asriad.
            Joriah olhou em volta. Um guarda tinha aberto a porta da sala e o Lorde Ariahad esperava por ele. Então Joriah levantou-se e correu em direção à janela, transformando-se na pantera feroz que realmente era. Aterrou silenciosamente na rua em baixo, caindo elegantemente na rua pavimentada. Lorde Ariahad gritou ordens aos seus guardas para que o perseguissem, mas Joriah correu rápido, rápido demais para os guardas.
            Quando chegou ao porto, havia um barco que partia. Transformou-se de novo e parou. Olhou para trás, para a cidade onde os pobres viviam em pequenas casas junto ao mar e onde os ricos viviam em mansões ao pé da floresta; onde o povo não passava de peças num jogo complexo e mortífero onde os ricos eram os jogadores; onde as teias da corrupção tocavam tudo e todos. Joriah olhou para trás e viu a cidade que por fora era brilhante e perfeita como uma maçã acabada de colher mas que na realidade é podre como uma maçã murcha e morta. Virou-se para o mar e saltou para o barco que partia, desaparecendo na noite. As luas brilhavam no céu e agora só os Deuses sabiam para onde ia.

            Notas: este conto passa-se em Erithios, no início do reinado da Rainha Olyria IV, quando Joriah tem apenas quinze Ciclos feitos. Em Erithios existem cinco estações, sendo que Yx, referida no conto acima, é uma época em que há bastante frio. Na cultura e religião de Erithios, os números três e doze dão sorte, assim como a cor vermelha, daí a presença destes elementos ao longo do conto.

Pedro Pacheco, 14 de Outubro de 2012

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